chão crespo

não há arado que corte
o vínculo torcido
dos campos áridos

ninguém os morde

senão o sol

nem o tambor dos chispes
a ira dos passos
os braços que narram
bocas sem milho
a um santo deprimido

só a nuvem de açude
pode roubar ao sol
a tirania
que tranca a porta do celeiro

ferool

nó gordão

aos crentes eu pergunto
porquê
e eles respondem
porque não

vice-versa para os ateístas
da parte dos crédulos

de que falamos

do homem deus
do deus homem

que nos associa
e nos dissocia

para isso nasceu a serpente
que arrasta o rabo até à cabeça
na tentativa dum bate-boca
sem avaliar a razão

o rabo pensa
e a cabeça foge
a cabeça pensa
e o rabo contesta

o bicho enrola-se num circulo duvidoso
e adormece na sombra da questão

a ciência humana teoriza
com ais de sim
de não
e um gemido de porém

se a serpente se engolisse
esvaziaria a terrível questão

a crença e a descrença
são
uma corda
com um nó
que não ata nem desata

um nó gordão

ferool

a vã existência do homem

o homem só tem valor no seu conjunto
na individualidade nada vale
tem uma breve passagem pela terra
onde ajuda ou dificulta.

o quê?!...

constrói barragens como os castores
ninhos como as formigas
canta como as cigarras
ruge de raiva como os leões
é traiçoeiro como as cobras.

mas é meu irmão.

o homem não está investido de nenhuma missão
cria e mata deuses
entre o inicio e a presente geração.

o que o diferencia do irracional?

lava as mãos com sabão
e assobia com os dedos na boca
coça a cabeça como os símios
regenera-se na individualidade
morre e re-morre no mesmo chão.

mas é meu irmão!...

ferool

menos homem e mais animal

para a minha inteligência de bicho
digo que o filho do meu vizinho
é menos bicho do que o meu
porque é bonito e o meu

suposto

- que labuta
louvar a fisionomia acomodada
sem possuir o esboço da critica -

o que é feio
e o que é belo
está intrínseco num código de hipocrisia
que desce do cume para os pés

jamais a ideia sobe além do ventre
senão quando se louva
no espelho pessoal

e aquilo que vemos no espelho social
é feio
ou belo...

o nosso discurso é unifico
falha-nos a dialéctica
que colida com o senso racional
e requalifique a representação

ferool

quimera cândida

decerto brincamos os dois à cabra cega
nos prelúdios na nossa adolescência
decerto nos tocamos ao pega não pega
no gozo inexperto da meia inocência

decerto gostamos de nós sem que soubesse-mos
como uma plebeia grega e um deus romano
sentindo sede de nós sem que quisesse-mos
bebendo vinho da fonte consolo insano

decerto nada aconteceu e não nos sabíamos
como heróis de romance ainda não feito
furtamo-nos um ao outro pois não queríamos

consorciar-mos numa história com preceito
tirando a venda dos olhos então morríamos
fazendo do sonho glória e das nuvens leito

ferool

a morte da solidão

o auspicio do amor supera o desânimo

disseram os seus nomes
e as flores incensaram os sons
que tocavam naquelas bocas

pereceram as noites frígidas
espetadas em espinhos de roseiras negras
excomungadas a jamais

assassinou a solidão
o vínculo de cores reais
que tomou conta do pacto

ferool

a morte do imortal

morrer antes de morrer

desde o ovo
o pássaro quer morrer
porque não sabe voar

para quê
ficar

no pudor de não saber
como voar
bebendo lições da mãe
que mal sabe voar

mais vale morrer
antes de mais

menos as águias reais
que essas
são imortais
voam
voam
voam
não caem jamais
morrem no céu a voar

morrer antes de morrer
vamos todos
todos morrer

porquê
morrer antes de morrer

se vivêssemos antes da morte
não morreríamos

como a formiga que espezinhamos
nos matámos

mas não nos importa a vida
apenas queremos comprar pitança
encher a pança
e morrer

falta-nos a idiotice da besta
que luta até à morte
porque a besta não morre

ela não sabe a morte

só morre quem chama a morte
como uma bolha consorte

um dia

vi um homem morrer
era o meu pai
achei-lhe um ar de cobarde
morreu antes da morte

não é a idade que faz morrer
mas o homem
que não quer viver

voar é morrer
ninguém vive
apenas pensa

ferool